domingo, 21 de setembro de 2014

Texto no Cabide: Pensamento de meio fio.

Lucas Alves,
Recorte da obra "Partes de mim",
 2013, Óleo sobre azulejo.


"Olhei para o canto com encanto, vi você assim perto/longe.
Sorri e fugi. Hoje espero um novo encontro.
Talvez me vejas com outros olhos ou com os mesmos. Tomara que me vejas bem, assim, com um novo sorriso. Se me deres permissão te buscarei, ou melhor, te enviarei um cartão postal com meu endereço, assim dou a chance de um dia você me achar."
{Rua do Chafariz}

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Texto no cabide: Velas para escrever


Tentando controlar a barulhenta respiração eu empurrei a porta, acompanhado de um leve ranger que penetrava meus ouvidos de forma agressiva. A loja parecia estar vazia. O silêncio era interrompido a cada três segundos por pingos de água que caiam da gaiola do pequeno pássaro que estava com os olhos fechados. Num insignificante descuido a chave que estava presa em minha mão cai ao chão. O pássaro assustado canta como se estivesse avisando que um estranho havia chegado.
Do balcão, escondido, ele gritou:
- Posso ajudar em alguma coisa meu jovem?
- Apenas vi que na vitrine tinha velas a venda, eu disse.
- Problemas com energia outra vez?
- Na verdade não, prefiro escrever a luz de velas quando já é madrugada.
O velho levantou de onde estava, erguendo-se em direção a uma prateleira do lado direito. Enquanto isso acontecia, eu andava lentamente entre a loja. Em seguida sem nenhum contato visual eu falei para ele:
- Se importaria se eu levasse as velas da vitrine? Não que eu seja chato, mas...
- As velas da vitrine estão empoeiradas e há um bom tempo ali expostas. Não vejo vantagens nisso.
- Eu sei. Só queria as velas que vêem as pessoas da rua passar.
- Já que insiste tanto, porque não pega você mesmo?
Me aproximei do balcão, peguei as chaves da mão dele e fui em direção a vitrine. Um gato de olhos bem brilhantes se esbarrou e entrelaçou entre minhas pernas. Tentando me equilibrar, sorri, e me engrandeci por não ter levado uma queda.
- O que é isso Nino, quer derrubar o moço? O velho Francisco falava, acariciando o gato que agora já estava sobre o balcão balançando o rabo suspenso.
Velas a mão, insisti em continuar olhando em toda a loja. Algo me chamou atenção antes de qualquer objeto que pudesse comprar ali. Ele, Sr. Francisco em um tom de voz ameaçador perguntou:
- É tudo isso que precisa?
Com olhares desatentos para os lados eu disse, sem hesitar:
- Não. Preciso de algo mais.
- Então, o que deseja?
- Peço-lhe que me conte, por que guardou esse segredo por tanto tempo?
Ele arregalou os olhos, engoliu com dificuldade a saliva, respirou fundo e não falou mais nada. Depois de algum tempo quieto e assustado ele questionou?
- Quem é você? Do que você está falando?
Sorri como quem sabia de muitas verdades, me ergui até a gaiola onde estava o pássaro, e o libertei da prisão. Em seguida, em tom sarcástico eu falei:
- Você já deveria ter feito isso há muito tempo, não acha? A liberdade é uma das melhores coisas que um homem pode ter, e melhor ainda quando é acompanhada de uma consciência livre. Vejo que o seu caso é bem diferente.
Francisco tangeu o gato que estava no balcão, e se aproximou com dificuldade até onde eu estava, no meio da loja, olhando para um espelho. Nós ali estávamos, os dois olhando para a imagem que refletia, ambos buscando comparações que talvez estivessem ali escondidas entres as rugas e a dor.
As lágrimas desceram dos meus olhos quando perguntei:
- Por que nunca quis me conhecer pai?
Não esperei a resposta, mesmo que há tempos quisesse ouvir. Segurei as velas, limpei as lágrimas e saí dali.