domingo, 28 de dezembro de 2014

Texto no cabide: Borboleta e vôo

De cá percebi a borboleta presa na palheta que limpa o para-brisa do carro. A primeira dúvida que surge: Estaria ela morta? De certo estava. Se estivesse viva recorreria ao bater das asas para tentar desprender-se.
Comentei sobre a borboleta presa, falei da cor amarela dela, especulei sua morte. O motorista riu.
Não sei ao certo o que me incomodava naquela imagem. Refletia sobre o vôo. 
No dia anterior eu havia escrito um verso sobre o “vôo livre”, comparava ao amor, talvez caberia perfeitamente enquanto metáfora. Novamente ao olhar a imagem da borboleta morta, presa naquela palheta que a capturara em movimento repentino, percebo a força desta metáfora em relação ao amor. Não contrario o pensamento de que o vôo é livre assim como o amor, considero adicional a isso que o vôo é incerto, às vezes trágico, assim como o amor.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Texto no cabide: Dias de trovoada


Antônia parecia um tenente preparando o exército para a guerra. Saía de quarto em quarto avisando que estava trovejando e que todos deveriam cobrir com toalhas ou lençóis os espelhos que existiam pela casa, como também a TV da sala, essa ela mesma fazia questão de cobrir, embora não tivesse nenhuma simpatia com tal aparelho. Ela temia que por algum momento um raio desembestado pudesse se sentir atraído pela casa dela.

- Fiquem quietos, respeitem as coisas de Deus. 
Dizia Antônia quando os netos conversavam e riam da cama. Afinal as conversas eram frequentes nesses momentos porque os netos, desprovidos de tal conhecimento de senso comum, eram obrigados a ficarem na cama esperando a trovoada passar. Nada de pés no chão, nem roupas vermelhas. Isso tudo seria suicídio com certeza. 
- Se estão com fome deixem que a mãe de vocês pega um biscoito. Nem pensar em pedir pra acender o fogo ou mexer em colher. 
Tudo atraía raio. As coisas que mais eram desejosas no momento atraíam raios. Não podia rir, mas naquele momento o que os netos mais sentiam vontade era de rir. Riam e se sentiam culpados quando eram interrompidos pelo barulho estridente do trovão.
Deus não seria tão mal assim para lançar raios em quem simplesmente ria, deitado na cama, do estômago barulhento do outro. 
Antônia quase sempre adormecia. Embora tivesse vontade, sempre deixava o cachimbo pro dia seguinte. Seria arriscado acender um cachimbo ali. Comprometeria a família toda.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Texto no cabide: Antônia

Outras vezes a vi ali sentada, impaciente olhando para TV, quem sabe esperando o momento certo de mandar desligar aquele aparelho perturbador.
Duas tentativas eram o suficiente para levantar daquele sofá rebaixado. Em passos acelerados para a cozinha, tangendo o gato que subira na mesa ela avistava da porta dos fundos as ovelhas a caminho do curral.
Um descuido qualquer com a tramela e o fogão de lenha se cobria de galinhas inseguras que esperavam o praguejamento final para saltar dali em cacarejos paralelos.
Antônia estava cansada da quebra de rotina ocasionada no mês de junho, mais ainda das pessoas que estavam ali com ela.
A filha não ajudava em nada, a neta chorava o tempo todo. Deveria Antônia ser sincera e falar que não precisaria mais de companhia nas férias de janeiro? A filha se sentiria um pouco ofendida com isso.
Talvez um aumento do uso do cachimbo pudesse ali sinalizar a insatisfação cotidiana e o desejo por estar só, ali no seu canto, no banco da cozinha, a olhar pro teto esfumaçado e os espetos pendurados.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Anúncios

Autor: Lucas Alves

Talvez uma característica física, um jeito peculiar de movimentar os braços, uma forma de gesticular com as mãos. Muita coisa pode servir para chamar atenção. Nem sempre dá para conhecer essas pessoas, saber o nome ou a rua onde moram, no entanto elas permanecem na memória, e estas memórias tão vivas são aqui expostas em anúncios, neste exercício híbrido de desenho e texto.
Reconhecer no outro o que também faz parte do “eu” é de igual maneira umas das ações que se faz nesse exercício de revisitação da memória, na busca por um entendimento do “eu” que parte de uma relação com as diferentes pessoas.
O anúncio aqui se apresenta como um registro de impressões provocadas por essa visualização do outro que de alguma forma nos persegue em memória. Nesses anúncios, apenas procura-se pessoas, sem definir uma finalidade concreta para elas. O questionamento surge: Estariam perdidas? As especulações então são as principais provocações nessa tentativa de reconhecimento do outro.
Propõe-se então no processo que as pessoas também intervenham criando anúncios partindo desse mesmo pensamento.
Dicas para criação de anúncio:
·       Relembre uma pessoa que tenha chamado sua atenção
·       Desenhe como você a viu
·       Elabore um texto descrevendo as características da pessoa, situando o lugar que estava quando a avistou
·       Una o desenho e o texto
·       Tire xerox e distribua por aí
A primeira intervenção ocorreu em um evento de estudantes na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, no dia 22 de outubro de 2014, no período da tarde. Os artistas Lucas Alves, Geisa Lima e Jéssica Oliveira distribuíram os anúncios - que eram reproduções xerocadas - enquanto as pessoas circulavam pelo espaço da Universidade.

 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Texto no cabide: Reza


E ela rezou mais naquele dia, embora soubesse que não tinha motivos para isso.
Na mão um terço. No canto do olho uma lágrima.
Parecia bêbada. Estava bêbada. Quem às três da manhã rezaria tanto?
A tramela, a bacia e a flor de plástico vermelha eram testemunhas de tamanha embriaguez.
- Vovó Antônia dormiu ajoelhada.
Disse a neta quando o dia amanheceu.
Os dias sempre amanheciam assim de joelhos cinzentos e rosto marcado pela textura do lençol.
- Por que reza tanto Antônia?
Essa pergunta já cansava os ouvidos.
Ela não respondia, resmungava, passava a mão nos cabelos e ia dar milho as galinhas.
Nunca quis responder. Nunca sequer deu pistas quanto ao que queria alcançar com as rezas. Se insistiam demais no assunto, descansava o cachimbo do lado esquerdo e fingia surdez, dessas que a idade avançada permite, para poupar maiores chateações.

Gustav Klimt - As três idades da mulher, 1905

domingo, 21 de setembro de 2014

Texto no Cabide: Pensamento de meio fio.

Lucas Alves,
Recorte da obra "Partes de mim",
 2013, Óleo sobre azulejo.


"Olhei para o canto com encanto, vi você assim perto/longe.
Sorri e fugi. Hoje espero um novo encontro.
Talvez me vejas com outros olhos ou com os mesmos. Tomara que me vejas bem, assim, com um novo sorriso. Se me deres permissão te buscarei, ou melhor, te enviarei um cartão postal com meu endereço, assim dou a chance de um dia você me achar."
{Rua do Chafariz}

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Texto no cabide: Velas para escrever


Tentando controlar a barulhenta respiração eu empurrei a porta, acompanhado de um leve ranger que penetrava meus ouvidos de forma agressiva. A loja parecia estar vazia. O silêncio era interrompido a cada três segundos por pingos de água que caiam da gaiola do pequeno pássaro que estava com os olhos fechados. Num insignificante descuido a chave que estava presa em minha mão cai ao chão. O pássaro assustado canta como se estivesse avisando que um estranho havia chegado.
Do balcão, escondido, ele gritou:
- Posso ajudar em alguma coisa meu jovem?
- Apenas vi que na vitrine tinha velas a venda, eu disse.
- Problemas com energia outra vez?
- Na verdade não, prefiro escrever a luz de velas quando já é madrugada.
O velho levantou de onde estava, erguendo-se em direção a uma prateleira do lado direito. Enquanto isso acontecia, eu andava lentamente entre a loja. Em seguida sem nenhum contato visual eu falei para ele:
- Se importaria se eu levasse as velas da vitrine? Não que eu seja chato, mas...
- As velas da vitrine estão empoeiradas e há um bom tempo ali expostas. Não vejo vantagens nisso.
- Eu sei. Só queria as velas que vêem as pessoas da rua passar.
- Já que insiste tanto, porque não pega você mesmo?
Me aproximei do balcão, peguei as chaves da mão dele e fui em direção a vitrine. Um gato de olhos bem brilhantes se esbarrou e entrelaçou entre minhas pernas. Tentando me equilibrar, sorri, e me engrandeci por não ter levado uma queda.
- O que é isso Nino, quer derrubar o moço? O velho Francisco falava, acariciando o gato que agora já estava sobre o balcão balançando o rabo suspenso.
Velas a mão, insisti em continuar olhando em toda a loja. Algo me chamou atenção antes de qualquer objeto que pudesse comprar ali. Ele, Sr. Francisco em um tom de voz ameaçador perguntou:
- É tudo isso que precisa?
Com olhares desatentos para os lados eu disse, sem hesitar:
- Não. Preciso de algo mais.
- Então, o que deseja?
- Peço-lhe que me conte, por que guardou esse segredo por tanto tempo?
Ele arregalou os olhos, engoliu com dificuldade a saliva, respirou fundo e não falou mais nada. Depois de algum tempo quieto e assustado ele questionou?
- Quem é você? Do que você está falando?
Sorri como quem sabia de muitas verdades, me ergui até a gaiola onde estava o pássaro, e o libertei da prisão. Em seguida, em tom sarcástico eu falei:
- Você já deveria ter feito isso há muito tempo, não acha? A liberdade é uma das melhores coisas que um homem pode ter, e melhor ainda quando é acompanhada de uma consciência livre. Vejo que o seu caso é bem diferente.
Francisco tangeu o gato que estava no balcão, e se aproximou com dificuldade até onde eu estava, no meio da loja, olhando para um espelho. Nós ali estávamos, os dois olhando para a imagem que refletia, ambos buscando comparações que talvez estivessem ali escondidas entres as rugas e a dor.
As lágrimas desceram dos meus olhos quando perguntei:
- Por que nunca quis me conhecer pai?
Não esperei a resposta, mesmo que há tempos quisesse ouvir. Segurei as velas, limpei as lágrimas e saí dali.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Texto no cabide: Espelhos


Tenho um pedaço de espelho quebrado, pendurado no banheiro, não sei quem o quebrou. Talvez o autor esteja destinado a anos de azar. Não quero me atentar a isso. Quero sinalizar que estou insatisfeito com o espelho. É pequeno, a iluminação do banheiro acaba por insatisfazer ainda mais o ato de olhar a própria imagem.
Desço a ladeira da rua em poucos metros e, no restaurante azul da rua seguinte há um espelho entre duas portas que dão para os banheiros, masculino e feminino. Lavo as mãos, não para exaltar assim minha preocupação higiênica, mas para garantir mais tempo em frente ao espelho. Ali me vejo, um outro diferente do espelho da minha casa. O cabelo parece sempre mais comportado, e o rosto um pouco mais definido. A noite quando desço para tomar sopa esse espelho não funciona mais, o problema também está na iluminação, que nesse momento não é a mesma do meio dia.
Recorro por fim ao espelho da farmácia, utilizo sempre como pretexto a preocupação com o peso. Subo na balança que fica em frente ao espelho e fico minutos prolongados me vendo e, por vezes, arrumando o Black Power. De início a atendente me olhava com estranheza, hoje já trata com normalidade, principalmente quando alego querer comprar balas de gengibre. Não dá pra contestar, esse último espelho é o meu preferido, dá pra ver dos pés até o mais alto frizz de cabelo.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Texto no Cabide: Aline


Ela é industriosa como uma abelha.
Feita de algodão doce com bônus de bexiga de soprar.
É olhar inquieto e simpático.
Tem mãos finas, pele clarinha, às vezes a bochecha é rosa.
Possui uma leveza nos movimentos e uma alegria que saltitam os trilhos dos dentes.
Tem dias que ela coloca um batom mais forte, um vestido estampado, senta na mesa e pede um suco, natural como tem que ser, suave como ela é, doce na medida.
Forçosamente ela busca seu grave, seu grotesco, sua parte mais bruta. Fico simplesmente rindo desse ensaio falho de quem só sabe ser o amor.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Texto no cabide: Na cama

Para de tagarelar feito louco no meu ouvido! Até ontem você não falava nada. Pensei até que estava zangado mesmo. Para de puxar meus cachos pra ver o tamanho do meu cabelo! Não já te disse que ele cresceu? Tudo bem que às vezes tenho sido grosso, mas você precisa viver mais um pouco pra perceber um tantinho do que eu gosto. Gosto de cafuné e abraço, por acaso você já me deu um abraço hoje? Não quero também que me dê agora simplesmente porque toquei no assunto. Amanhã quando eu lembrar menos da conversa de hoje você pode me dar esse abraço, pode ser como aquele último que me deu, ao lado da geladeira, foi demorado e inesperado. Hoje liguei pra Sandra, ela falou que não irá com a gente para o bar na sexta, acho que porque Galvão disse não se sentir a vontade ao sair com a turma toda. Não vou cancelar com todo mundo por causa de uma pessoa só. Ele que procure se adequar mais ao grupo. Terminou o filme de ontem? Três horas de filme, ninguém merece! Eu baixei dois filmes bem legais pra hoje a noite, um fala sobre uma menina que nasceu com uns problemas mentais, mas que possui uma habilidade imensa para lutar karatê, o outro fala de um grupo de amigos contemporâneos do Renato Russo e todo aquele sucesso do Legião Urbana. Tião? Você está cochilando enquanto falo? Vou fazer pipoca.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Texto no cabide: Conversas efêmeras






[desse e de outros mundos de onde se chegam noticias...
PS: inquietude tem sido um substantivo roto para definir minhas asas.
PPS: alugo substantivo ou metáfora mais eficaz.
PPPS: ou antes, adquire-se novas asas.]





[ Também sofro de inquietude nas asas Deisiane Barbosa. Às vezes penso que é por não ter encontrado o lugar ideal pra pousar. Já reparou como a vida tem sido um tanto ameaçadora? Sempre sempre me confundem com pássaros e já querem tacar pedra. Me sinto mais aliviado quando pouso em papeis. É um dos melhores lugares pra descansar o corpo, as angústias e as ideias. O disco rígido também tem me servido, afinal... tem sido complicado achar árvores nessas ruas desertas e modernas. Não estou reclamando, apenas temendo o que vá acontecer daqui pra frente. Enfim, passe aqui sempre que puder com seu rabiscário. (Rua do Chafariz, n. 63)]





[... a procura de árvores extintas / arvore em face de papel [esses galhos disfarçados, essas folhas onde me escondo] muito bem observado: eu que sou muito dada a fios [e desfios] me abrigo na linha do meu rabisco em papel. somos um gênero diferente de pássaro - só pode... - e desses há milhares -ainda que raros: milhares ainda que raros. eh por volta disso mesmo...]






Biografia Incompleta


segunda-feira, 30 de junho de 2014

Texto no Cabide: Mensagens soltas/presas


Não deveria eu te amar menos?
Não deveria doer tanto te amar demais?
É tanto amor que me esqueço da dor.
Doía segundos atrás, mas agora minha cabeça no travesseiro te traz pra perto de mim.
Ouvi um barulho na TV, esqueci de desligá-la.
Talvez não seja uma má idéia te ligar agora. É seu aniversário! Em aniversários não se dorme.
Em aniversários devemos comemorar em todo o dia. Me deixa morar em você no restante dos dias? Prometo falar baixinho quando eu estiver andando por ruas próximas do ouvido. Prometo forçar menos as passadas pelo teu abdômen. Mas prometa que não vai colocar placas de "proibida a entrada" quando eu quiser mergulhar nos teus olhos sem roupa.
Quanta bobagem eu penso, quantas bobas agem enquanto eu penso.  Já desliguei a TV. Não ouço mais nada, exceto o trem. Ele passa à meia noite quando todos dormem, hoje atrasou mais um pouco. Vamos ver o trem? Te abraço enquanto esperamos. Meu corpo é sempre quente, você nem vai querer se agasalhar.
Posso te fazer um convite?  “Convido-lhe a me amar! (Rua do Chafariz, nº 63)”.


Texto no cabide: Bula

BULA


Era como se fosse tudo muito confuso. Como se fosse tudo feito pra não entender. Era verso improvisado que não precisaria de sentido pra acontecer. Eu não precisava entender, só queria sentir. Me deleitava no detalhe que não me dizia nada, ou talvez me dizia tudo. Dizia e dizia, tudo. E ao mesmo tempo que dizia, me fazia desistir e apagar da memória, querendo que eu criasse algo novo, ouvisse de novo e abrisse os olhos de novo e de novo, com dores que eram próprias do olhar puro.

sábado, 14 de junho de 2014

Texto no cabide: Texto de Geladeira


Obra de Van Gogh

Sabe aquele par de sapatos esquecidos atrás da porta? É pra não esquecer que por ali passei. Acordei cedo, o cheirinho de café despertou minha vontade de encarar o dia que há tanto tempo não vejo, talvez seja um bom dia, ou um mau dia, porém só não quero ser acusado de que não tive atitude suficiente para me entregar a vida.
Mais tarde eu chego em casa.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Texto no cabide: Micropoemas para o Inverno

Obra de Egon Schiele
 Abra aço

Pra que então
Em mim há braços
Se não forem para envolvê-los
em teus abraços?



Saudade

É tanto frio
Que congela a espinhela
Quando entra a saudade
Pela fresta da janela.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Novidade no cabide: Marcador de páginas

Mais marcadores de páginas foram colocados no forno essa semana.
Aqui estão algumas imagens.
cabidedebiongo@gmail.com

 

Até agora músicas e textos tem inspirado cada marcador. Alguns nomes da música brasileira tem embalado o lápis.

Cícero

Léo Fressato

Cassia Eller

Marcelo Jeneci


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Texto no Cabide: Para vovô


Pedro, quando eu sentava na mesa de manhã cedo pra te acompanhar no café era simplesmente pra ver tua barba branca, alvinha feito espuma de leite, se sujar com o amarelado da banana cozida. Eu gostava de todo o seu ritual cotidiano de rezar antes de tomar o café e lavar as mãos e barba na bacia verde que ficava ao lado do filtro. Minha mãe já havia dito que não precisava fazer o sinal da cruz no rosto pra se proteger, mas eu olhava disfarçadamente pra você, pra ver sua mão flácida se benzendo e sua boca balbuciando palavras nunca decifradas por mim. Lembro com nitidez da sua imagem, do seu jaleco e do chapéu de couro, de você entrando pra casa quando o sol se punha, ajudado por um cajado de madeira.

Pouca coisa eu entendia e pouco entendo até hoje. Achava engraçado te ver cheirando uma pitada de fumo, com espirros em seqüência. Não sei bem se o fumo lhe fazia mal, mas eu gostava do cheirinho que ele deixava no jaleco marrom. Ele me fazia lembrar das histórias sobre lobisomens que você contava, você descrevia minuciosamente a cena. Recordo sobre as rezas a noite, as senhoras sambadeiras, as casas de farinha e o sinal da cruz livrador.


domingo, 1 de junho de 2014

Texto no cabide: Saber de sofrer

Lucas Alves

Quem sabe de ouvir dizer, não sabe de nada.
Talvez saberia se soubesse sentir e viver.
Saberia se soubesse conhecer...
entender,
ver,
sofrer...
Mas saber de ouvir falar, não garante o saber.
Às vezes até o próprio "ver" engana, a ponto de fazer acreditar simplesmente naquilo que os olhos puderam alcançar.
Ver com os olhos, garante o não saber de nada, ver com coração, que seria um tipo de sentir, te garante um mínimo de saber em saber o que tem por detrás da imensidão que te é permitida quando se aprende a conhecer. Conhecer, não de saber o nome e a rua onde mora, mas sim de sofrer quando abre a porta trancada no íntimo do outro.

Obra: Egon Schiele

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Novidades no Cabide: Marcador de páginas

Hoje parei os deveres e me debrucei em algo que há tempos queria fazer: Criar novos personagens para marcadores de páginas do Cabide de Biongo!



segunda-feira, 12 de maio de 2014

Texto no Cabide: Sobre Deus

Eu desci as escadas do sótão e encontrei Deus lá de pijama, sentado, tocando piano. Não sabia distinguir ao certo que música era, mas era Jazz, tenho quase certeza disso. Ele riu, finalizou a música, iniciou uma outra, olhou pra mim e sinalizou com a mão, pedindo que eu sentasse ali do lado. Sentei, não resisti, abracei, mais um vez ele riu e retribuiu o abraço e, ficamos por ali demasiadamente juntos, não havia espaço entre nós, era um abraço de verdade, a música continuava, agora conseguia identificar, era “Let it be”.



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Texto no cabide: O quarto

E diziam por aí, de boca em boca, que ele tinha entrado naquele quarto que ninguém antes entrou, e que havia vindo de lá quieto, aparentemente normal, mas cheio de mudanças. Tudo mudou, a forma de falar, o jeito como pensava, as expressões já não vinham em formas de palavras, elas sussurravam de forma fragilizada pelo olhar.

Ele tinha certeza do que tinha visto, e estava contente em ter sido o primeiro e único até então a descobrir o que existia dentro daquele quarto, ao mesmo tempo em que refletia sozinho com o medo, o medo de ter descoberto aquilo que levaria tempos a ser desvendado.

Já não importava mais as conversas em cada esquina da cidade, pouca importância era dada aos risos combinados de quem criticava a atitude inovadora. Ele sabia que teria que conviver com tal ignorância. Muita coisa tinha sido deixada naquele quarto, a impaciência, os apegos materiais, o choro, os preconceitos. Tudo havia se despencado como num descuido qualquer de deixar cair da mão o que restava, no entanto permanecia ainda o medo, apenas ele permaneceu, bem menor que antes, mas ainda permanece, permanecerá, como se fizesse parte do ser que ele era, ou como se fosse ele mesmo o próprio medo.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Obra no cabide: Fotografias de Joel Sternfeld



Joel Sternfeld é um fotógrafo artístico conhecido por suas fotos de grande formato documentário dos Estados Unidos e por ter ajudado a estabelecer a fotografia em cor como um meio artístico respeitado. Ele tem muitas obras nas coleções permanentes do MOMA em Nova York eo Getty Center, em Los Angeles. Ele influenciou toda uma geração de fotógrafos de cores, incluindo Andreas Gursky, que tomam emprestado muitas técnicas e abordagens de Sternfeld.
Na tentativa por um entendimento no que diz respeito a poética do artista Sternfeld, se percebe algumas características, temas e abordagens que definem de algum modo a produção deste fotógrafo, sua intenção e seu modo singular que contribui para o campo da fotografia artística, para as artes visuais, como também para os demais fotógrafos e artistas que utilizam as obras de Joel Sternfeld como referência para produção na contemporaneidade. As fotografias de Sternfeld apresentam partes importantes de sua busca no registro da paisagem da socialização humana, interação e imaginação.
Em muitas das representações de paisagens e lugares que podem ser comumente registrados, Sternfeld sinaliza uma postura conceitual longe de uma simples representação da natureza. Seu campo não é nem bonito, nem sublime, nem pitoresco. E o aspecto plano oferecido em muitas das suas composições reverberam um vazio eloquente, bem como uma embarcação para um tema recorrente em seus trabalhos - os efeitos do consumo humano sobre o mundo natural. Sendo um dos principais expoentes da fotografia a cores, Sternfeld começou a inserir neste modo “novo” na década de 70, a aplicação de inovação tecnológica de inovação poética e estilo. O norte-americano atenta para ideia de que a paisagem, a cor, o retrato não poderiam mais ser uma realidade objetiva como nas fotografias de anos anteriores, desse modo ele aproveita a nova possibilidade para jogar, editar e enfatizar o elemento humano.

No seu ato de fotografar insere-se o caráter de imagens comuns, como se tivessem sido tiradas por um turista de passagem, após uma análise mais cuidadosa é que se pode talvez entender o processo e intenção do fotógrafo, que estão pautados na vontade de refletir sobre sua própria banalidade da vida cotidiana e sobre a mudança de perspectiva em uma sociedade onde os indivíduos são cada vez mais banais, incoerentes, inconsistentes, mas, aparentemente, isso nem sempre é óbvio para alguma anormalidade subjacente, uma nota discordante. Um fator constante em sua obra é a sua terra natal América, os seus habitantes e os rastros deixados por pessoas na paisagem. Com um sentimento sutil de ironia e uma sensação excepcional de cor, Sternfeld nos oferece uma imagem da vida cotidiana na América ao longo das últimas três décadas.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Texto no cabide: Equilíbrio


Ainda consigo me equilibrar com uma perna só. 

Ainda contigo a mim quis livrar como uma pena ao sol. 

Sem vento, nem tempo. 

Sem passo, nem arrastos que me levem para você ou para o alto.



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Texto no cabide: Pedido de comida




- Vou querer uma carne mal passada.
- Você come carne?
- Como!
- Come?!
- Como, e como como.
- E como você come?
- Como todo mundo que come come, oras.
- Como todo mundo que come come? E como come todo mundo que come?
- Comendo como se come.
- Com...
- Cale-se, cale-se, e traga logo o que eu te pedi!
- Como?
E essa foi a última palavra dita pelo garçom.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Obra no cabide: História de princesas



Princesas são pessoas como a gente, apesar de terem uma coroa na cabeça. Elas amam passear, adoram botas, sapatos diversos e pra quem pensa que elas prezam por um vestido super longo, isso é mito. Como toda mulher elas cuidam dos mínimos detalhes. Elas casam,  não com o príncipe indicado pelo pai, mas com um cara legal que lhe dará filhos. As princesas são fascinadas pela gestação e são mulheres super independentes que amam curtir a vida e amam amar. 

Esse é o tema dos belos desenhos de Sara Liz, menina esperta e questionadora de apenas 6 anos.





Cabide de Biongo
cabidedebiongo@gmail.com

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Aquele caso no cabide: Cabelo Black - Capacete, capelo e poltrona de ônibus

 Capacete
Tamires Lima, negra, amante do seu black power, Designer e Ilustradora.

Ter o cabelo Black bem redondinho é o sonho de muitos. E como sabemos Black não esquenta (até protege do sol) e ao contrário do que se pensa ele é levinho, é um cabelo nuvem. Já o capacete é uma armadura. Pesado e rígido nos protege também. Mas o que acontece quando usamos os dois? O cabelo amassa e fica no molde do capacete-armadura. E ainda tem quem diga que nosso cabelo-nuvem é armado. Na verdade ele é tão dócil que está sempre a mercê dessas coisas que colocamos em cima dele. Pois então, para devolvermos a sua forma nuvem original, sugiro o cafuné com os dedos ou usar o pente-garfo que penteia sem desfazer os cachos. Eu uso capacete o tempo mínimo necessário e deixo meu cabelo solto logo. Pois ter cabelo Black é não querer apaziguá-lo dando forma bruta a ele. É atitude de sair por aí com sua forma original, e como diz a expressão “com a cabeça nas nuvens”.


Capelo
Lorena Morais, jornalista, autora do blog Encrespando, defende a identidade natural do cabelo crespo.

Ao concluir a graduação e realizar minha formatura, pensei como eu iria fazer para usar o capelo, já que meu cabelo black power é bem volumoso. Pensei em trançá-lo ou usar um turbante, para caber na cabeça, mas pensei o quanto meu cabelo representa resistência para mim. Pensei que a formatura deve se adaptar a nós e não a gente a ela. Por isso fui com meu cabelo volumoso disposta a encarar o que fosse. Mas mesmo assim pensei: e se não der na minha cabeça? Mas aí fui e na hora de experimentar, eis a surpresa: o capelo coube em minha cabeça! Aí descobri que ele tem um ajuste, ou seja, vamos todas e todos de Black Power na formatura para causar. Nós podemos!


Poltrona de ônibus
Deisiane Barbosa, Graduanda em Artes Visuais pela UFRB. Cachoeirana, nômade, escritora de fios, performer-brincante, ensaiando para fotógrafa e pretensa videasta


Uma hora se cansa e o pescoço pede sossego, porque não só ele, mas todo o corpo reclama de estar eternamente sentado. O que pode-se então fazer? Como se remediar? Meu caro, minha cara, cuja densa cabeleira reclama da rispidez das poltronas, não há jeito mesmo, conforme-se, guarde a vaidade no bolso, perdoe seu pescoço, relaxe, contenha-se, acalme-se. Ao término da viagem, se você for muito sortudo pode ser que uma só sacudida resolva. Um desamassa aqui, desamassa ali, pra ficar bom. Por outro lado possa ser que só depois de recorrer a um espelho, um pouco de umidade e creme de pentear a coisa se resolva. Nesse caso, porém, até conseguir um espelho o que fazer senão se expor com a insegurança, a impressão tenebrosa de que seu cabelo está medonhamente amassado? Só os que sofrem me entenderão. Mas acreditem, um dia a coisa é superada, um dia quem sabe até adaptem as poltronas para os cabelos mais exigentes. Eis uma esperança na qual agarrar-se. Até lá porém, entregue-se às poltronas de ônibus, não resista tanto, deite e role. E se amassar? Paciência. E se bagunçar? Paciência! “Levante, sacode a poeira e dá a volta por cima”.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Texto no cabide: Se eu fosse de papel


Descobri que não sou feito de papel.

Não sei do que sou feito, mas sei que é de algo mais resistente que um papel.

Se eu fosse de papel, estragaria com o primeiro banho de chuva, com a primeira lágrima, com a primeira pisada na poça de lama. Confesso que nos banhos demorados cheguei a enrugar como papel, mas só por questão de minutos.

Se eu fosse feito de papel, estragaria muito mais com as palavras malditas, com os rabiscos invejosos, com as salivas respingadas, das críticas disfarçadas.

Ah, se eu fosse de papel, estaria a disposição para encobrir as sujeiras dos outros, ou talvez seria rasgado com o primeiro projeto fracassado.


Sou feito de algo mais resistente que papel, disso eu sei, porque se eu fosse feito de papel, ficaria apenas esperando alguém chegar e escrever a minha trajetória, mas como não sou feito de papel, sigo em frente, com o direito de tentar escrever minha própria história.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Obra no cabide: Pelas barbas do artista




Aquele barbudo com posição da coluna no mínimo agonizante, com suas partes íntimas escondidas por plantas carnívoras desse mundo que não é fácil, está olhando pra cá ou para baixo. Olhe bem para os dedos delgados dele, estão querendo dizer alguma coisa que eu não arriscaria em dizer o que é.

É uma aquarela sobre papel, do artista Nestor Júnior.

Devo aqui dizer que as obras de Nestor são as minhas preferidas entres as pinturas dos artistas contemporâneos. Todo esse aspecto sofisticado, onírico, angustiante e lindo de se ver me faz amar ainda mais esse mundo intenso e libertador das artes visuais.


Tive o imenso prazer de ir a uma exposição do artista catarinense, realizada na cidade de Salvador-Ba, “CarnívoroCoração-Casulo”. Foi realmente uma experiência incrível!


Texto: Lucas Alves
Cabide de Biongo
cabidedebiongo@gmail.com